No futebol profissional, ainda há casos em que o amadorismo sobrevive
em meio aos altos salários e status do esporte moderno. No Campeonato
Pernambucano, o Petrolina que penou para inscrever seus jogadores no
estadual, conta com o trabalho de um preparador físico multiuso.
Gilberto Feitosa coloca os atletas para correr, a noite administra uma
escola e em seguida vai prender bandido e manter a ordem nas ruas. As 24
horas são curtas para o policial, educador e preparador físico Feitosa.
Quando termina o trabalho no campo, Gilberto Feitosa vai "prender gente" (Foto: Lula Moraes)
- É corrido, tento ajustar a preparação física aos outros trabalhos.
Sou vice-diretor do colégio, mas é a noite e fica fácil para combinar
com os treinos. Na polícia civil sou investigador plantonista, então
tenho expediente de 24 horas e três dias de folga. No dia que estou na
delegacia, negocio com os colegas e o delegado para sair na hora do
treinamento e pagar as horas na minha folga. É por amor, se pudesse
viveria de futebol.
Aos 41 anos, Gilberto Feitosa é servidor público de Juazeiro,
cidade-irmã de Petrolina, na margem baiana do Rio São Francisco. Está há
vinte anos na polícia civil e há dez como educador por conta da
formação superior em educação física, onde é vice-diretor da escola
estadual Antonílio da França Cardoso, no bairro Dom José Rodrigues, na
periferia Juazeirense.
- As pessoas me questionam como consigo aguentar o ritmo puxado.
Realmente cansa muito, mas são apenas quatro meses de Campeonato
Pernambucano. Às vezes acontece de uma esticada com um Brasileiro da
Série D, por exemplo, no entanto não é o ano todo. O período em que pego
mais pesado no clube é de pré-temporada, em janeiro, quando estou de
férias da polícia e da escola, então fica perfeito para trabalhar
intensamente com os atletas. Dá para aguentar.
Gilberto garante que apesar o cansaço, o policial e o diretor não
influenciam negativamente o preparador-físico Feitosa. Seja qual for o
estresse, ele é esquecido na hora de trabalhar com os jogadores.
- Acontece de no dia anterior eu presenciar uma cena de crime, ver
cadáver, pegar bandido e quem sabe trocar tiros (apesar de há anos isso
não acontecer) ou ter a insubordinação de alunos, chego no Petolina e
"esqueço". Não deixo essas coisas afetarem o meu trabalho e o prazer que
ele me dá é relaxante.
Mas se os problemas das jornadas alternativas não chegam ao gramado do
estádio Paulo Coelho, em alguns casos as realidades de Feitosa se
misturam aos treinos do Petrolina.
- Já teve situações de eu ir treinar os garotos do Petrolina e
encontrar um ex-aluno meu. Fico pensando "conheço esse garoto' e de
repente os meninos é que dão o primeiro passo com um "professor, você
aqui?". Teve muito garoto danado que meu deu trabalho na escola que
depois reencontrei, mas sem problema, pois eles sempre me respeitaram.
No atual elenco, tenho apenas o atacante Gustavo como ex-estudante do
colégio que trabalho. Agora, sobre o meu lado policial, poucos comentam.
Algumas vezes alguém brinca quando digo que vou embora continuar o
trabalho. "Vai prender gente, né, professor?"
Antes de prender gente, Feitosa foi preso pela paixão futebolística
quando chegou a ser aspirante a jogador de futebol, no final da década
de 80. Seu maior orgulho foi ter convivido com o time do Bahia campeão
brasileiro de 1988. Gilberto era atacante e colega do centroavante
Charles no juniores e admirava meia Bobô e companhia.
- Eu treinava com aqueles caras, pegava o mesmo ônibus que eles. Era
menino e quando o profissional precisava de alguém para compor o elenco
nos treinos, me chamava. Foi uma honra, pena que a a carreira acabou não
deslanchando. Me empreguei na polícia e segui na instituição. Anos
depois resolvi fazer um curso de educação física, no qual me formei em
2000. Só que quando ainda estava na faculdade, eu já trabalhava com os
clubes, como Petrolina e 1 de Maio. Ia colocando em prática o que eu
ainda estava aprendendo.
Feitosa liderou a greve para receber salários
atrasados (Foto: Lula Moraes)
Na crise enfrentada pelo Petrolina durante a passagem de ano, Feitosa
foi um dos líderes da greve dos jogadores que quase tira a Fera
Sertaneja do Pernambucano. Sem treinador, equipamentos, com três meses
de salário atrasado e um presidente improvisado, o clube estava sem
rumo. Assim como na vida pessoal, Gilberto acumulou função e foi
preparador físico e treinador do grupo na pré-temporada até não enxergar
mais condições de trabalho. Após a manifestação, um treinador assumiu,
mudou o presidente, as inscrições dos atletas foram realizadas,
equipamentos entregues pela Federação Pernambucana e o salário acertado.
- É uma pena que com todo o nosso esforço, nossa luta, deixaram o clube
jogado dessa forma. É de deixar qualquer um desestimulado. Gosto muito
do que faço, mas não trabalho de graça e sem condições é pior ainda, não
vou ser demagogo. Ainda bem que foi resolvido e agora temos que correr
contra o tempo - criticou Gilberto, que entre muitas improvisações,
junto ao preparador de goleiros, teve que consertar as bolas furadas do
Petrolina.
Apesar de ter três salários, Gilberto leva uma vida simples de quem
precisa manter a mulher e dois filhos. O que ganha num clube pequeno do
futebol pernambucano é maior do que recebe como homem da lei ou como
gestor educacional. Por isso, além de ser prazeroso, a preparação física
serve como acréscimo na renda da família Feitosa. Mas se fosse para
escolher uma das três profissões, com a garantia de um bom pagamento, o
menino das categorias de base do Bahia fala mais alto.
- Gosto muito do que faço, seja qualquer um dos três serviços, mas se
fosse para escolher, seria preparador físico. Estudei para isso, essa
era a minha intenção quando fiz educação física. Poxa, analisar os
atletas com calma, com equipamento certo, focado apenas naquilo seria um
sonho. Quando o Petrolina enfrentou Sport e Náutico no ano passado,
elogiaram a correria dos jogadores da gente e consequentemente o meu
trabalho. Quem sabe numa dessa recebo uma proposta. Lógico que tenho
duas profissões em Juazeiro, porém ficariam balançado, pois é isso que
me norteia.