iBahia Esportes conversa com
treinadores, dirigentes, historiador e presidente da FBF para aprofundar
assunto polêmico no país. Veja repercussão
Hailton Andrade
(hailton.neto@redebahia.com.br)
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Lula Pereira comandou o Bahia em 2003 e no ano de 2006
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O
racismo é tabu no Brasil. Pouco se fala, muitos fingem não ver. No
futebol, da mesma forma como acontece na sociedade, o problema existe e
raramente é discutido de maneira ampla. "Me desculpe, você é preto" é o
título de uma matéria que faz uma reflexão sobre o assunto na edição
deste mês da revista Placar. O texto traz o desabafo de treinadores
negros, cada vez mais raros no alto escalão do futebol brasileiro, e tem
como personagem principal Lula Pereira, ex-técnico do Bahia, e que diz
ter ouvido de cartolas a frase que serviu como chamada da reportagem.
Pegando o gancho, o iBahia Esportes resolveu aprofundar a discussão e falou com profissionais atuantes no futebol baiano, desde dirigentes atá treinadores.
De
cada um dos procurados pela nossa reportagem, uma recepção e uma
percepção diferente acerca do assunto. O primeiro a falar foi Paulo
Isidoro, ex-meia-atacante da dupla Ba-Vi e atualmente auxiliar técnico
do Ypiranga. Avançado no curso de formação de treinadores da
Confederação Brasileira de Futebol (CBF), o ex-atleta revelou incômodo
com a falta de discussão sobre o tema.
"Eu esperava tanto que
alguém falasse isso comigo, é algo que me incomoda muito. O futebol
brasileiro sempre teve vários destaques negros em campo, o nosso símbolo
é negro (Pelé), mas fora de campo isso não acontece. Não sei se é
preconceito, má qualificação... Acho que é um pouco de cada, acho que se
você se qualificar bem, se você buscar aquilo que você quer, acho que
você alcança. Mas às vezes é estranho. Olha o Andrade, como é o cara é
campeão brasileiro pelo Flamengo, time de repercussão mundial, e depois
não consegue trabalho?", questiona.
Primeiro técnico negro
campeão brasileiro, Andrade assumiu o Flamengo de 2009 de forma
provisória, mas foi efetivado no cargo e conquistou o hexa nacional pelo
clube. Porém, acabou demitido cinco meses depois com 73% de
aproveitamento. Após ficar sem emprego durante meses em 2010, desabafou
em entrevista à TV Globo. "Uns dizem que é por causa do meu vínculo com o
Flamengo e outros falam de preconceito. Não existe treinador negro
trabalhando na Série A. Alguns amigos me dizem que não estou trabalhando
por causa da minha cor. Mas não quero acreditar nisso", comentou na
época. De lá para cá, ele só comandou Brasiliense, Paysandu e Boa
Vista-RJ.
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Paulo Isidoro, ex-Vitória e Bahia, é auxiliar do Ypiranga
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"Andrade
não foi o escolhido do Flamengo. Foi um acaso, uma solução temporária.
Só assim que os técnicos negros têm chance", opinou Lula Pereira à
Placar. Ele, que comandou o Bahia em 2003 e 2006, esteve à frente do
Rubro-negro carioca em 2002 e está sem clube desde que saiu do Ceará no
ano passado. O desabafo também toma como base números. Ao término das
Séries A e B do Brasileiro em 2012, por exemplo, apenas um entre os 40
técnicos era negro: Anderson Silva, interino do Ceará no fim de
temporada.
História - Gentil Cardoso, único negro a
dirigir a Seleção Brasileira, Didi, que comandou a Seleção do Peru na
Copa de 1970, e Valmir Louruz, campeão da Copa do Brasil em 1999 pelo
Juventude, são alguns dos técnicos que alcançaram o topo da profissão.
Mas o número é pequeno se pensarmos que em campo não existe esse
desequilíbrio entre brancos e negros presentes.
"Vivemos numa
sociedade preconceituosa, de uma falsa democracia. Prega-se um moralismo
imenso, mas as atitudades são quase nada. E não seria de se estranhar
isso. Acho coincidência demais. A gente carrega isso de goleiros, de que
goleiro negro no Brasil não dá. Criou-se uma cultura no Brasil desde o
Barbosa (goleiro da Seleção de 1950). Penso que seja realmente uma forma
de preconceito. Não é possível que tantos jogadores com qualidade não
tenham vingado como técnicos pelo simples fato de serem negros", afirma
Janilson Brito, comandante do Juazeiro, segundo melhor time da primeira
fase do Baianão 2013.
Mestre em História pela Universidade
Estadual de Feira de Santana, Henrique Sena, que defendeu a dissertação
"Pugnas Renhidas: futebol, cultura e sociedade em Salvador, 1901 -1924",
faz uma análise do ponto de vista histórico. "Há uma desigualdade na
qual os negros apenas assumem a posição quase que unicamente como
jogadores, enquanto que as elites brancas, que ainda são os que comandam
o futebol do ponto de vista institucional (dirigem e presidem clubes,
associações e federações), assumem as posições intelectualmente
privilegiadas. Vale lembrar que a inexistência de negros dirigindo ou
treinando clubes de futebol continua a ser legitimada por resquícios de
um racismo científico no qual os negros apenas possuem virtudes físicas e
corporais como força, velocidade, enquanto que as habilidades do
intelecto eram naturalmente associadas à raça branca".
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Reportagem da revista Placar do mês de março fala sobre a presença cada vez mais rara de técnicos negros no futebol brasileiro
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BaVi -
Para dirigentes de Bahia e Vitória, porém, a ausência de técnicos
negros nos grandes clubes do país não está atrelada ao racismo. "O
número de técnicos negros no mercado é pequeno, são poucos. São poucos
os treinadores no mercado em disponibilidade. O Lula (Pereira) trabalhou
anos e anos sem nenhum problema. É trabalho, não é a cor. Quem tem que
buscar se profissionalizar são as pessoas. O clube não tem culpa, não
vejo nenhum preconceito. O número de treinadores no mercado é reduzido.
Os negros é que têm que buscar o espaço. Não importa a cor. Se for
competente, vai conseguir", acredita Raimundo Queiroz, diretor de
futebol do Leão.
Gestor de futebol do Bahia, Paulo Angioni segue o
mesmo raciocínio. "Não lembro de algum caso que eu tenha vivenciado,
apesar de estar há muitos anos nisso. Em contrapartida, trabalhei com
treinadores negros várias vezes. Eu tenho visto alguns caso no futebol
europeu, asiático, tenho visto no noticiário... No Brasil já teve
oportunidade de acontecer, principalmente dentro do campo, de um jogador
xingar o outro, de torcedor, mas não vejo com tanta frequência
(racismo) aqui. Não acredito muito nisso".
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"É trabalho, não é a cor", afirma Raimundo Queiroz
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Angioni: "continuidade não se dá pela cor e sim pelos resultados"
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Tanto
Angioni quanto Queiroz acreditam que a cor da pele não cria barreiras
aos técnicos no futebol brasileiro. "Nos últimos anos tivemos o Lula
(Luís Inácio Lula da Silva) como presidente. O Lula é negro. Eu sou um
negro. Não vejo nada disso. Acho que o número é reduzido, falta gente
tentando buscar o espaço. Cada um tem que mostrar do que é capaz, que é
competente. Aposto com você que qualquer negro que aparecer bem vai ter
chances", afirmou o responsável pela montagem do elenco do Vitória.
"Acho
que a continuidade não se dá pela cor e sim pelos resultados. O Lula
(Pereira) já teve oportunidades em grandes massas, como no Bahia e no
Flamengo. Respeito muito ele, sou próximo ao Lula, tive várias
oportunidades de estar com ele na época do Felipão no Palmeiras da
parceria com a Parmalat. Tenho boa relação com o Lula. Respeito a dor
que ele está vivendo. É oportuno falar sobre isso, tem o desabafo de um
profissional. Tem que acabar com certas coisas que possam gerar um
preconceito futuro", pontuou.
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Janilson comanda o Juazeiro, 2º melhor time da 1ª fase do Baiano
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Quantidade -
Na matéria da Placar, o ex-jogador Serginho Chulapa utilizou o
argumento de que poucos ex-jogadores negros se arriscam na carreira de
treinador para sustentar a ideia de que a ausência de negros na elite do
futebol nacional não está diretamente ligada ao preconceito. "Existem
grandes ex-jogadores negros com capacidade para treinar. Mas falta
interesse do negro. Se não se preparar, não vai ter espaço", defende. O
pensamento é compartilhado por outros treinadores, mas com ressalvas.
Paulo Isidoro revela que há um desencorajamento que parte até dos
companheiros de campo.
"Os jogadores até brincam: 'pô, você vai
entrar nessa?'. Aí eu digo, 'se você pensa dessa maneira, aí é que vai
continuar do jeiro que está'. Eu tenho essa vontade não só para isso,
mas de passar meus conhecimentos e tentar também derrubar essa barreira.
Isso é importante, ter alguém que queira bater de frente com isso. É um
assunto polêmico. Às vezes as pessoas não entendem. Não sei o motivo.
Se eu no caso ficar olhando por esse lado, não vou começar nunca. Alguém
tem que tentar. O racismo existe, a gente sabe, mas acho que
competência prevalece". Janilson concorda em parte. "Há essa
possibilidade, mas a gente viu que alguns tentaram e que não conseguiram
ir além. Hoje o mercado é restrito. É algo abstrato".
O
historiador Henrique Sena, por sua vez, aponta um outro problema. A
falta de negros se arriscando no mercado de treinadores está atrelada a
um processo histórico de discriminação. "A relação entre futebol e
racismo no país é histórica e não pode ser desconsiderada ou subestimada
diante de outros fatores que possam explicar a ausência negra nos
cargos de chefia. Não dá pra dizer que não há muito treinadores e
dirigentes negros, pois poucos se aventuraram na carreira ou porque os
que existem no conseguiram resultados expressivos. Esses próprios
motivos devem ser considerados na sua historicidade. Se existem poucos
treinadores negros no mercado hoje é porque, durante décadas, muitos
deles desistiram ou não sentiram seguros para se aventurar diante de
circunstâncias raciais desfavoráveis".
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Quinho: "não acredito em racismo, o que existe é classismo"
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Classismo -
O técnico Francisco Cardoso, o Quinho, chamou a atenção no Campeonato
Baiano de 2011. Com um jeito peculiar, comandava o Ipitanga usando terno
e palavras em inglês para orientar seus jogadores. Ele também acumulou o
cargo de gerente de futebol à época, o qual exerceu no Jacuipense no
ano passado. Atualmente ele está à frente de um projeto que atende mais
de 300 jovens atletas, o Centro de Formação de Futebol da Bahia. Para o
Coach Quinho, como ele costuma se apresentar, o pequeno número de
técnicos negros trabalhando em grandes equipes do futebol brasileiro é
causado por um duelo de classes.
"Existe um classismo. A palavra
classismo significa 'quem é você?'. Quando eu morava nos Estados Unidos,
eles não me viam como negro ou branco, mas como profissional à frente
deles. Eles viam o que eu produzia, o que eu fazia, não pelo que sou ou
pelo que fui. Se, por exemplo, fui um grande jogador no Brasil, tenho
possibilidade de ter chance de ser treinador pelo que fiz em campo. Mas
isso não significa que eu possa ser bom treinador. O que existe no
Brasil... não acredito no racismo, existe classismo: 'Sou bom para
caramba, mas sou negro. As coisas não são fáceis por causa da minha cor,
mas se for Pelé, as portas vão se abrir'. Tem um pouco de facilidade se
você tem status", afirma Quinho.
"Não acredito em racismo neste
caso, o que existe é classismo. Você é negão, mora na Boca da Mata, mas
você é bom, toda Bahia sabe, mas você mora na Boca da Mata. Você tira
esse cara e leva para os Emirados Árabes, você passa a ser o melhor do
mundo. Aí aqui o cara começa a respeitar. A imprensa de lá começa a
dizer que é bom e o classismo daqui acaba", completa Quinho, que mora no
bairro de Salvador citado.
Federação - Único negro no
comando de uma das 24 federações estaduais (contando a do Distrito
Federal) no país, Ednaldo Rodrigues, que preside a Federação Bahiana de
Futebol (FBF), afirmou ao iBahia Esportes que jamais sofreu
retaliações pela cor da pele desde que assumiu o cargo, mas revelou um
outro tipo de preconceito. "Nunca, jamais aconteceu e não vejo
acontecendo. Acho que as pessoas têm que reconhecer nas outras o
trabalho, a competência, a educação das pessoas e os valores éticos, os
valores morais. Nunca teve comigo nenhum tipo de discriminação. Logo que
cheguei na federação teve, por parte de alguns, teve o preconceito da
cidade: 'ah, é do interior'. Não existe isso de que para ser presidente
da federação tem que ser de tal cidade. Eu simplesmente rechacei, o que
tem que ser julgado é o trabalho e idoneidade, não o local ou se a
pessoa é pobre, rica", contou Rodrigues, que é natural de Vitória da
Conquista.
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Ednaldo diz que sofreu preconceito por ser do interior
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Sobre
a presença de técnicos negros no futebol, o dirigente disse não ter
ouvido ou presenciado casos semelhantes ao relatado por Lula Pereira,
que afirma não ter conseguido emprego por conta da cor da pele. Por
outro lado, ele lamentou e sugeriu que Lula pretasse queixa contra os
dirigentes que tenham agido de forma preconceituosa.
"Isso é um
crime. Se existe essa situação, desconheço. Entendo que cada um desses
que sofreu preconceito dessa forma deva denunciar através de um órgão
competente. Sinceramente, nunca vi alguém chegar e não ter mercado por
ser negro, acho que o que tem ser visto é competência e ética,
principalmente. Que dirigente foi? Que clube foi? Tem que se dizer para
que essas pessoas tenham uma representação. Não vejo no futebol
brasileiro onde nós temos isso, justamente no país onde predomina a raça
negra. Qualquer um que comete um crime desse tipo deveria ser
denunciado, são pessoas que não estão à altura de dirigir nenhum clube
ou de administrar nada", pontua.
Ednaldo Rodrigues pede união dos
treinadores. "Cabe no momento os treinadores se unirem, eles precisam
de uma organização maior. Espero uma associação que possa dar todo um
ensinamento, uma doutrina e que essa associaçao possa bater de frente
com essa discriminação para que isso não possa se propagar. Se ele (Lula
Pereira) está dizendo, tem que identificar".
Situação -
Segundo Censo Placar realizado em 1996, entre os 264 jogadores dos 24
clubes que participaram do Brasileirão daquele ano, 79 eram negros,
cerca de 30%, e a maioria está aposentada dos gramados, mas nenhum
comanda um time de grande expressão atualmente. Nomes como o de Cláudio
Adão, que parou em 96, e Cristóvão Borges, que pendurou as chuteiras em
94, por exemplo, estão fora do mercado. Adão se tornou instrutor de
atores que encenam jogadores de futebol na TV e no cinema, enquanto
Borges está sem trabalho desde que deixou o Vasco no ano passado. De
acordo com a matéria da revista, o baiano não quer comentar o tema
enquanto estiver sem trabalho. Segundo ele, entretanto, o período sem
emprego é opcional, pois ele teria recusado propostas.
Racismo - Queixas
como a de Lula Pereira, a que resultou na matéria da Placar, não são
acontecimentos isolados. "A postura de Lula Pereira, independentemente
das suas qualidades enquanto treinador, é um reflexo da reação ativa ao
racismo mascarado da nossa sociedade e do nosso futebol. Da mesma forma
que conquistaram historicamente um espaço legítimo e justamente
reconhecido na prática do futebol seja pelas virtudes físicas, mas
também intelectuais, afinal jogar bolar não é só uma atividade corporal,
os negros continuam a lutar por novos espaços no futebol brasileiro, a
despeito de todo o preconceito e discriminação racial que ainda existe
na nossa sociedade pretensamente 'harmônica'", explica Henrique Sena,
autor de artigos sobre a história do futebol em Salvador e doutorando em
História pela Universidade Estadual Paulista.
Fifa - Em
2011, o presidente da entidade máxima do futebol mundial, o suíço Joseph
Blatter, causou polêmica ao dizer, em entrevista à CNN, que não havia
racismo no futebol. "Não existe racismo no futebol. Eu acho que o mundo
todo está ciente dos esforços que vêm sendo feitos contra o racismo e a
discriminação. No campo de jogo, às vezes você fala algo que não é muito
correto, mas no final da partida, tudo está acabado e você tem o
próximo para se comportar melhor. Nós estamos em um jogo, e no final,
nós apertamos as mãos. É isso que acontece", disse. O mandatário da Fifa
se desculpou depois da repercussão da declaração, mas não deu a
entender que mudou de opinião.